Tuesday, July 04, 2006

Pessoa institui casamento homossexual

Aí pela segunda metade dos anos 20 do século passado, eventualmente após uma visita ao Abel referido no post anterior, Fernando Pessoa escreveu a "Carta Inorgânica do Estado Independente do Bugio", uma prosa satírica que me parece ainda hoje inédita, mau grado as sucessivas revoadas de salteadores da arca. A fé pública e conformidade legal do documento são abonadas, segundo o autor, pela chancela do "notário" Abel Pereira da Fonseca, o que pode pretender insinuar a origem tabernária da prosa.

Para que não sabe, o Bugio é um ilhéu na foz do Tejo, equipado com um farol. Cinquenta anos antes de Artur Semedo ter proclamado a independência das Berlengas (1978) e entronizado Mário Viegas como seu rei, já Fernando Pessoa tinha mostrado o caminho a seguir, elaborando a Carta Inorgânica bugiense.

Não perdeu a actualidade, muito pelo contrário, esse documento da história política do Bugio e "continente adjacente". Uma das medidas fundadoras do novo Estado insular, com efeito, era a abolição da obrigatoriedade de o casamento ser heterossexual. É por esse mesmo objectivo que hoje lutam várias sumidades da cena política da III República, como o Prof. Louçã.

Aqui vai o texto sem mais delongas:


Carta Inorgânica do Estado Independente do Bugio


§ único. - As leis deste Estado, em contrário das do continente adjacente, serão redigidas em português.

N.º 1. - São adoptadas todas as disposições constantes do contrário de todas as leis adoptadas no citado continente adjacente.

N.º 2. - Designadamente, e para facilitar a imigração de artistas, se exclui, de todas as leis e registos de propriedade referentes a casamento, a exigência de diferença de sexo entre os nubentes.

N.º 3. - Este Estado institui para os nacionais a categoria única de cidadãos do Bugio, a qual poderá ser obtida por qualquer processo insinuante, sendo permitido o da existência.

N.º 4. - Este Estado institui para os estrangeiros três categorias progressivamente ornamentais - meliante, cevado e javardo - e, como não haverá (em virtude de progressivos decretos e emendas) maneira de distinguir as capacidades respectivas, a promoção será feita, como no continente adjacente, por indistinção.

N.º 5. - Como, segundo o direito moderno, os mortos mandam, serão considerados administradores deste Estado, além de outros de igual categoria que venham a ser oportunamente designados, os cidadãos Quinto Horácio Flaco, Diogo Alves, Dante Alighieri, José do Telhado, John Milton, João Brandão, Conselheiro J. W. von Goethe, William Shakespeare e Manuel Peres Vigário.

N.º 6. - Para evitar qualquer descrédito do banco do Estado, não haverá banco do Estado.

N.º 7. - Este Estado poderá deixar de existir por cansaço.

N.º 8. (e § único) - É desde já nomeada única cidadã honorária deste Estado a Exm.ª ausência do Sr. Júlio Dantas.


Bugio, a alumiar.

Dada em Lisboa, pelo grupo exilado revolucionário do Bugio, nas notas do notário Abel Pereira da Fonseca.


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Fonte:
- O original de 1 página dactilografada encontra-se no Espólio Fernando Pessoa (BN) sob a cota 92F-52.

Observações:
- O Forte do Bugio, equipado com um farol, está construído sobre um cabeço de areia no meio do Tejo, perto da foz do rio, em frente a S. Julião da Barra. O ilhéu, antigamente chamado Cabeça Seca, é correntemente conhecido por Bugio, tal como o forte, que oficialmente dá pelo nome bem português de Fortaleza de S. Lourenço da Cabeça Seca (ufff!). A fortificação, de forma circular, foi mandada construir no reinado de Filipe II de Espanha, nos finais do século XVI. Tal como hoje sói acontecer, a construção arrastou-se um bocadinho. Iniciadas as obras em 1590, cinquenta aninhos depois, em 1640, ainda não estavam completadas. Com a feliz Restauração, os trabalhos arrancaram a bom ritmo, pois escassos dezassete anos volvidos, em 1657, parece que terminaram. Segundo sólidos indícios, no final do século XVII o forte dispunha já duma "estrutura faroleira" que, no início do reinado de D. José, sabemos que funcionava a azeite. O terramoto de 1755 deu cabo da torre e respectiva candeia de azeite, mandando então o ministro Sebastião José de Carvalho construir um farol a sério, que só entrou em funcionamento em 1775.

- Diogo Alves foi um conhecido criminoso do séc. XIX, que roubou e matou pessoas atirando-as do alto do Aqueduto das Águas Livres.

- Manuel Peres Vigário foi o "inventor" do conto do Vigário, assunto sobre o qual Fernando Pessoa publicou o artigo "Um grande português", no diário Sol, n.º 1, de 30 de Outubro de 1926, reeditado no Notícias Ilustrado de 18 de Agosto de 1929, sob o título "A origem do conto do Vigário".

- Como se pode constatar, o Prof. Louçã e o seu Bloco seguem hoje as pisadas do "grupo exilado revolucionário do Bugio". Não temos dúvidas sobre em quem Pessoa votaria no nosso actual espectro partidário, sobretudo depois de uma visita ao Abel.


© Texto de José Barreto



Sunday, June 18, 2006

Pessoa, os cafés e as tabernas de Lisboa

Várias fotografias, pinturas e esculturas imortalizam o Fernando Pessoa frequentador de cafés, seu poiso diário, onde meditava, escrevia e convivia. Os cafés aonde ia eram os mais conhecidos de Lisboa: as duas Brasileiras, a do Chiado e a do Rossio; o Martinho da Arcada, no Terreiro do Paço; o Café Martinho, ao lado do Teatro D. Maria; o Café Montanha, na Rua da Assunção; provavelmente, também o Café Chiado, o Nicola, o Portugal, o Gelo e outros. Todos situados, naturalmente, na Baixa e Chiado, o pequeno mundo onde Pessoa se movia e trabalhava.
De todos estes lugares, desocupados entretanto, na sua maioria, pelos ff da finança, da fancaria e do fast food , apenas a Brasileira do Chiado mantém ainda hoje um arzinho ténue, quase inexistente, de café literário ou café de tertúlias.

É hoje evidente que, das muitas maneiras de non fare niente, a vida de café era uma das mais produtivas. Mais profícua do que muitas formas oficiais de laborare, embora sempre olhada como ociosidade potencialmente subversiva. Desde que os cafés chegaram à Europa no século XVII, pela porta da Turquia, que as autoridades dos regimes opressores os têm debaixo de olho. O puritanismo, religioso ou laico, também sempre estigmatizou os cafés como locais de indolência, maledicência e perdição. "Intriga de café", "conversa de café", "literatos de café", etc., são expressões curiosamente depreciativas acerca de um lugar onde, há séculos, se constrói laboriosamente a literatura, se afina a crítica e se debate a política nacional. A "mesa do café" é um lugar de liberdade malquisto dos defensores da ordem estabelecida e do sacrário familiar.

É óbvio que um solitário empedernido e um desassossegado doublé de indisciplinador mental como Fernando Pessoa só podia fazer do café a sua segunda casa. Não há paradoxo quanto a ser solitário. Disse Alfred Polgar que os frequentadores de café são "pessoas cuja repulsa pelos seres humanos seus semelhantes é tão viva quanto a necessidade de estar com gente que queira estar só, mas que precise de companhia para isso". A tertúlia de café funciona, para o solitário, como "material isolante" que protege o seu mundo interior do exterior, Polgar dixit. E quem somos nós para duvidar do filósofo de café por excelência?

Na Lisboa do final da Monarquia e princípio da República, cada tertúlia literária e política tinha o seu antro, a sua sede, de modo que Fernando Pessoa, que fugia a "capelas" e círculos apertados, podia visitar três cafés num só dia, especialmente se procurasse alguém, para discutir um projecto ou pedir dinheiro emprestado. A utilidade que Pessoa buscava nas conversas de café era, porém, o mais das vezes, a do conteúdo da própria conversa, sobre cuja qualidade e elevação era extremamente exigente. Se alguém apenas quisesse falar de si próprio ou dos seus pequenos problemas existenciais, Pessoa virava-lhe as costas. Da mesma forma que abominava quem dissesse ordinarices ou mantivesse um nível baixo, plebeu ou agressivo de conversação. Isto apesar de Pessoa, consabidamente, preferir as companhias masculinas às femininas, que o intimidavam ou aborreciam. Os cafés lisboetas das primeiras décadas do século XX eram locais eminentemente misóginos, aonde uma mulher decente raramente se aventurava - e só em companhia masculina. Diferentes seriam algumas casas de chá, onde a presença feminina já era natural, pelo menos à hora do dito.

O nosso maior poeta do século XX escreveu alguns textos em papel de carta de cafés, ornado do respectivo timbre. Há, por exemplo, um poema de 1916 escrito em papel timbrado da Brasileira. Em alguns escritos pessoanos aparecem referências a cafés e aos seus frequentadores, mas, que eu saiba, Pessoa nunca abordou com maior desenvolvimento o tema da vida de café. A obra publicada e inédita do escritor é tão vasta, porém, que posso estar enganado.

Nos cafés, Pessoa portava-se irrepreensivelmente e exigia que os outros fizessem o mesmo. No consumo, não devia passar do cafezinho, com ou sem bagaço. Vinho, obviamente, não era para ali. Pessoa não queria que as pessoas com quem se relacionava o vissem alcoolizado. De facto, um frequentador da tertúlia do Café Montanha nos anos 20 e 30, Francisco Peixoto Bourbon, que foi próximo de Pessoa, afirmou que nunca nenhum amigo do poeta o viu embriagado. Pessoa cuidava da sua imagem (verdadeira) de gentleman, de que também fazia parte o laço papillon, o bom chapéu, a boa gabardine.

A taberna foi o outro poiso diário de Pessoa, embora regido por mui diversas leis. Aí as companhias eram certamente de carácter muito mais anónimo e ocasional. O grande bebedor busca o anonimato. As tabernas, as carvoarias e as leitarias ("onde eu não ia beber leite") que Pessoa frequentava não tinham nome digno de nota, à excepção da adega Abel Pereira da Fonseca, a que Pessoa concedia o petit nom carinhoso de Abel. "Estive no Abel", "vou ao Abel", dizia ele à Ofélia, certamente para a afugentar de si. Na Baixa, Rua dos Sapateiros, existe ainda hoje uma relíquia do passado: a Camponesa, uma leitaria com azulejos arte nova, quiçá frequentada pelo nosso poeta. No Chiado havia também, leio, a "leitaria do Araújo" (talvez a Leitaria Garrett), onde Stuart Carvalhais rabiscava os seus famosos bonecos entre dois copos de tinto. Um desses bonecos de taberna pode ter sido a sua famosa caricatura de Pessoa, publicada na Ilustração em 1929.

Mesmo alcoolizado, Pessoa nunca terá pisado o risco. O gentleman retirava da taberna e ia para casa - a sua ou a de algum amigo - quando não queria que a família o visse em estado de embriaguês. No final da vida, morando sozinho, embebedava-se mais em casa: o barbeiro trazia-lhe todas as manhãs ao primeiro andar da Rua Coelho da Rocha uma garrafa de aguardente, que ele consumia à noite. A fonte desta conhecida história é o filho do dito barbeiro.

Ao contrário do café, a taberna foi tema de escritos de Fernando Pessoa. Há um poema, por exemplo, em que o ortónimo glorifica a taberna e a bebedeira - que me perdoem a família e os fans mais devotos. O original dactilografado, sem título e sem emendas (nem nódoas de vinho...), data de 18 de Setembro de 1933. Foi pela primeira vez publicado em Poemas de Fernando Pessoa, 1931-1933, Imprensa Nacional, 2004, edição crítica de Ivo Castro. Ei-lo:

Vem beber dois. Toda a vida
É uma coisa sem nexo
Que só se sente bebida
Quando perde o nexo e o sexo.

Vem comigo conversar
Enquanto o vinho se esgota.
Que mais nos vale este estar

A morrer-nos, gota a gota?

Tudo é absurdo. Nada obriga.
E sobre esta confusão
É ponte o fio que liga
A taberna ao coração.

Wednesday, June 07, 2006

O Café Central de Viena

O mais famoso café de Viena, o Café Central, situado no rés-do-chão do palácio Ferstel, na Herrengasse, foi fundado em 1876, encerrado em 1943 e reaberto, novamente, em 1982-1986. O Central foi o local preferido dos artistas, escritores e políticos entre o encerramento do Café Griensteidl, em 1897, e a abertura do Café Herrenhof, em 1918. Parece que, nas andanças dos seus 130 anos, perdeu bastante do sofisticado ambiente de café literário, para se tornar, actualmente, num café-restaurante chic, procurado por turistas em busca de miragens.

Aos clientes fixos do café chama-se ainda hoje centralistas, termo cunhado em 1926 por Alfred Polgar na sua “Teoria do Café Central”, cujo texto se oferece no primeiro post deste blog em inédita tradução portuguesa.

No princípio do século XX, Viena era uma capital de Império com uma vida cultural comparável, se não superior, à de Paris e Berlim, animada por uma pléiade de intelectuais e artistas, em boa parte de origem judaica. Os cafés vienenses, espaçosos e ostentando luxuosas decorações neo-clássicas ou neo-góticas, mais raramente art nouveau (ou Jugendstil), eram os principais centros de encontro desta esfuziante vida cultural. Aos jornalistas, poetas, romancistas, pintores e arquitectos famosos, por vezes acompanhados de figuras femininas, juntavam-se os médicos e os psicanalistas, bem como os políticos de várias águas, desde os social-democratas mais moderados aos revolucionários bolcheviques, passando pelos anti-semitas e os futuros nazis. É de pasmar a lista das celebridades e beaux esprits cultores desta vida de café na Viena fin de siècle ou, depois, na Viena do modernismo. Os maiores carniceiros do século XX, hélas, também por lá passaram. Sim, estou a falar de Hitler e Stalin, como mais abaixo se verá.

Eis alguns dos frequentadores mais famosos do Café Central, da sua época dourada, na viragem do século, até ao advento do nazismo:

Viktor Adler (1852-1918), co-fundador do partido social-democrata austríaco. “Social-chauvinista” durante a I Guerra Mundial, não se devia dar muito bem com Trotsky, que conheceu e ajudou em 1907. Era pai do Friedrich Adler, que lhe saíu politicamente contrário.
Friedrich Adler (1879-1960), político social-democrata e revolucionário austríaco, filho de Viktor Adler. Foi opositor da política de guerra e, em 1916, matou o primeiro ministro da Monarquia Austro-Húngara, conde Karl von Stürgkh. Safou-se com um ano de prisão, graças ao termo da guerra.
Otto Bauer (1881-1938), político social-democrata austríaco, um das figuras de proa do austro-marxismo. Depois de ter participado em governos com os sociais-cristãos, Bauer chefiará a resistência ao clerical-fascismo de Dollfuss e partirá para o exílio parisiense em 1934, ali morrendo meses depois do Anschluss.
Lev Bronstein (ou Leon Trotsky), que viveu em Viena de 1907 (fugido da Sibéria) até 1917. Era cliente fixo do Café Central, onde habitualmente jogava xadrez. Discutia ali política com os socialistas austríacos, mas tinha má opinião deles, por não serem revolucionários ou por não serem pacifistas. Em Outubro de 1917, o presidente do governo austríaco, conde Heinrich Clam-Martinic, anunciou aos seus pares a eclosão da revolução bolchevique na Rússia, acrescentando que “o seu instigador foi, ao que parece, o Sr. Bronstein do Café Central”.
Alfred Adler (1870-1937), médico, psiquiatra, psicanalista. Rompeu em 1911 com Freud, com quem em 1902 havia fundado a Sociedade Psicanalítica de Viena.
Sigmund Freud, frequentador, mas não muito assíduo, do Café Central. Não nos repugnaria imaginar sentados a uma mesa do canto o doutor Freud com a sua discípula, amiga e admiradora Lou Andreas-Salome.
Krafft-Ebbing, psiquiatra, autor do clássico Psychopathia Sexualis.
Theodor Billroth (1829-1894), grande cirurgião alemão prussiano, catedrático da Universidade de Viena, considerado o fundador da cirurgia moderna.
Theodor Herzl (1860-1904), judeu natural de Budapest, viveu em Viena. Foi o fundador do moderno sionismo político. Sucedeu-lhe à cabeça do movimento o igualmente húngaro Max Nordau.
Peter Altenberg (1859-1919), boémio e escritor de origem judaica. Escreveu aforismos, poemas em prosa, esboços, pequenas peças, tudo reunido numa dúzia de volumes. Tem um estátua de papier-mâché no próprio Café Central, sentado a uma mesinha, perto da porta de entrada. De seu verdadeiro nome Richard Engländer, mudou de nome para se demarcar da cultura burguesa e convencional dos seus pais. Ter-se-ia convertido ao catolicismo em 1900. Foi um campeão de todos os fracos e indefesos que via tratados de forma insensível, nomeadamente crianças, serviçais e mulheres casadas. Foi também um defensor da "superioridade" dos povos considerados "primitivos" em relação aos "civilizados". Figura não convencional e extravagante, usava sandálias, vivia em hotéis, era senhor de uma gigantesca colecção de postais ilustrados (mais de 10.000) e era tido por pedófilo. Recebia o seu correio pessoal no Café Central, mas também frequentava o Café Museum e o Café Landtmann.
Adolf Loos, célebre arquitecto, cliente do Central, projectou o Café Museum e o interior do Café Hawelka.
Oscar Kokoschka, pintor expressionista, amigo de Karl Kraus, pintou retratos no Café Central.
Felix Salten (1869-1945), nascido em Budapest de família judaica, viveu desde muito jovem em Viena. Foi escritor, crítico e ensaista do círculo "Jovem Viena". Autor do livro Bambi (1923) que, em 1942, Disney transformaria em filme de grande sucesso. É dado como o autor de um romance erótico publicado em 1906, Josefine Mutzenbacher, que relata a vida de uma prostituta vienense. Famosa foi a sua relação de grande inimizade com Karl Kraus. Exilado na Suiça a partir de 1939, morreu em Zurique no fim da guerra.
Robert Musil (1880-1942), grande escritor modernista austríaco, autor de uma das obra-primas mundiais do séc. XX, O Homem sem Qualidades. Foi-lhe recusado o Nobel da literatura. Viveu entre Berlim e Viena e, sob o nazismo, exilou-se na Suiça. O seu café preferido em Viena era o Museum.
Vladimir Illitch Lenin, encontrou-se repetidamente com Trotsky no Café Central.
Alfred Polgar (1873-1955), escritor austríaco de origem judaica húngaro-eslovaca, politicamente um socialista independente. Foi o autor da célebre "Teoria do Café Central". Trabalhou como jornalista, folhetinista, ensaista, crítico de teatro e escritor prolixo em Viena, Praga e Berlim. Cultivou o "pequeno escrito". Escreveu sketches para o cabaret Fledermaus (Viena) e colaborou em revistas satíricas, como o semanário Simplicissimus (Munique). Rainer Maria Rilke, Franz Kafka, Thomas Mann e Robert Musil tinham grande apreço pelas suas qualidades de escritor. O advento do nazismo, em 1933, fê-lo regressar de Berlim a Viena, onde até 1938 trabalhou com enormes limitações. Após o Anschluss tentou exilar-se na Suiça, mas foi-lhe negada residência, pelo que passou a Paris. Em 1940 teve, novamente, que fugir aos invasores nazis, desta vez para Lisboa, onde a 4 de Outubro embarcou num navio grego para Nova Iorque, juntamente com Heinrich Mann e Franz Werfel. Nos EUA trabalhou como jornalista da imprensa exilada de língua alemã e como argumentista para os estúdios da MGM. Depois da guerra regressou à Europa, vivendo com base em Zurique até à morte.
Stefan Zweig (1881-1942), escritor austríaco de origem judaica, amigo pessoal e colega de mesa no Café Central de Alfred Polgar, o qual escreveria o argumento para o filme The Burning Secret, tirado do romance homónimo de Zweig.
Hermann Broch (1886-1951), poeta, romancista, dramaturgo e ensaista vienense de origem judaica. Convertido ao catolicismo em jovem, regressou no fim da vida ao judaísmo. Autor de A Morte de Virgílio e da trilogia Sonâmbulos. Preso no dia da ocupação da Áustria pelos nazis, conseguiu exilar-se na América. No fim da II Guerra Mundial escreveu uma Psicologia das Massas.
Ea von Allesch (1875-1953), também conhecida por Emma Rudolf. Jornalista de moda em Viena e Berlim, antiga modelo de nu. Chamavam-lhe "Rainha do Café Central". Ea casou três vezes e, entretanto, teve relações amorosas com vários frequentadores do café, como Alfred Polgar e Hermann Broch. Era amiga de Musil e de Rilke.
Milena Jesenská (1896-1944), jornalista e tradutora checa. Outra figura feminina dos cafés literários de Praga e, depois, dos de Viena. Era filha de um dentista de Praga, com quem viveu em conflito. Aos 20 anos, Milena conheceu Ernst Polak, um tradutor judeu frequentador de cafés que a apresentou ao Café Arco, de Praga, onde deambulavam Kafka (que não chegou, então, a conhecer pessoalmente), Max Brod, Franz Werfel, entre muitos outros. Depois de metida pelo pai num asilo psiquiátrico durante oito meses, Milena fugiu, casou com Polak e foi com ele viver para Viena. Ali começou uma hesitante carreira de jornalista de moda. O marido era-lhe infiel e Milena meteu-se nas drogas, sobretudo cocaína. Teve um breve romance com Hermann Broch e, depois, com Franz Kafka, por correspondência. Milena apaixonou-se pelos contos de Kafka e escreveu-lhe a propor traduzi-los para checo. Dessa carta de 1919 nasceu uma correspondência que durou até 1923. Kafka e Milena encontraram-se, porém, raras vezes. O principal encontro durou apenas dias e teve lugar em Viena, em 1920. Terão aparecido juntos, ao que se diz, nos cafés literários da Herrengasse. Kafka já estava gravemente doente e Milena não se decidia a deixar Polak por um escritor tuberculoso. Após a morte de Kafka (1924), Milena passou os manuscritos que ele lhe confiara a Max Brod, que os publicou. Depois de se ter casado mais duas vezes, Milena adoeceu gravemente. Quando recuperou da doença tornou-se dependente de drogas e sexualmente promíscua. Abandonando a droga, militou no Partido Comunista, de que seria expulsa por protestar contra os processos de Moscovo de 1936. Tornou-se numa combativa militante anti-nazi, entrando para a clandestinidade após a ocupação alemã de Praga, em 1939. Em 1940 foi presa e enviada para o campo de concentração de Ravensbrück, onde morreu em 1944.
Lina Loos (1884-1950), née Obertimpfler, actriz e escritora vienense, frequentadora dos cafés vienenses e do Café Central em particular. Era originária de uma família bem conhecida de Viena, proprietária do Café 'Casa Piccola' no bairro central de Mariahilf. Depois de estudar representação, tornou-se uma actriz e cantora de cabaret de sucesso em Berlim (Unter den Linden), Munique (Elf Scharfichter) e Viena (Nachtlicht, Fledermaus). Depois de se divorciar do arquitecto Adolf Loos, com quem esteve casada entre 1902 e 1905, tentou a sua sorte como actriz nos EUA, onde triunfou. Regressou à Europa antes do começo da Grande Guerra. Rudolf Beer, director do Raimundtheater de Viena contratou-a em 1922. Sob a sua direcção, Lina actuou ainda no Deutsche Volkstheater de 1924 até 1938, quando se retirou do palco. Lina, que também trabalhou como escritora, era tida na sua juventude por uma das mais belas mulheres de Viena. Esteve sempre em foco na vida cultural e intelectual da cidade. Ao seu círculo de amigos pertenciam celebridades como Peter Altenberg, Egon Friedell, Franz Theodor Csokor (poeta, dramaturgo e romancista, 1885-1969), Franz Werfel, G. Kaiser, Bertha Zuckerkandl and G. Wiesenthal.
Alma Mahler-Werfel (1879-1964) compositora e pintora vienense, conhecida pela sua beleza e inteligência. Alma Schindler teve como primeiros amores o pintor Gustav Klimt e o compositor Alexander von Zemlinsky. Foi casada sucessivamente com Gustav Mahler (1902), Walter Gropius (1911) e Franz Werfel (1929). Mahler impediu-a de seguir uma carreira artística. Teve uma célebre relação amorosa com o pintor Oskar Kokoschka, que a representou juntamente consigo em vários quadros célebres (por exemplo, "Noiva do Vento"). Com o marido judeu Franz Werfel teve de fugir aos nazis da Áustria, em 1938, e de França, em 1940, conseguindo chegar aos Estados Unidos via Lisboa em Outubro de 1940.
Vicki Baum (1888-1960), popular romancista vienense de origem judaica, autora de dúzias de best-sellers, dezassete dos quais adaptados ao cinema desde o princípio dos anos 30 por Hollywood. Até aos 28 anos foi música (harpista) profissional, escrevendo nas horas vagas. O primeiro marido, um jornalista, introduziu-a na vida literária de Viena. O segundo foi o maestro Richard Lert. Trocou depois Viena por Berlim e na década seguinte instalou-se na América, depois de o filme "Grande Hotel", adaptado de uma obra sua, ter ganho o Óscar para o melhor filme (1932). A Alemanha nazi proibiu as suas obras e Vicki naturalizou-se americana em 1938. Nos anos 40 tornou-se numa escritora de língua inglesa, escrevendo romances, contos, dramas e argumentos para filmes.
Egon Schiele, pintor expressionista. Parece que este ia mais ao Café Museum.
Anton Kuh (1890-1941) poeta e jornalista judeu austríaco. Kuh (palavra que significa vaca em alemão) «fut un dandy, un brillant orateur et un écrivain satirique du gabarit de Karl Kraus, qu'il connaissait bien. Il est l'incarnation de l'intellectuel oisif, familier des cafés de Vienne et de Prague. Il observait les autres courir après l'argent, le travail et la gloire». Artista do curto bilhete, deixou centenas de pequenos textos que compõem “um retrato decapante da sua época e da ascensão do fascismo na Áustria». Fugiu de Viena horas antes da chegada das tropas nazis à sua cidade natal, em 1938, e apanhou o último combóio para Praga. Morreu no exílio na América. Café de l'Europe é uma recolha dos seus famosos bilhetes, que a Calmann-Lévy publicou em tradução francesa em 2003.
Leo Perutz (1882-1957), romancista austríaco natural de Praga, viveu em Viena até ao Anschluss, fugindo então para a Palestina. Autor de onze romances, elogiados por Jorge Luis Borges, Graham Greene e Italo Calvino.
Arthur Schnitzler, dramaturgo, crítico, romancista e contista de origem judaica. Uma parte considerável da sua juventude foi passada no Café Griensteidl e, depois, no Café Central. Na autobiografia intitulada Juventude em Viena, Schnitzler fala duma tal Theresa, "a muito cobiçada empregada do café que eu frequentava, onde jogava bilhar de manhã, cartas à tarde e bilhar e cartas à noite." Estudou Medicina e Psiquiatria, tornando-se amigo pessoal de Freud. Trocando, depois a clínica pela escrita, Schnitzler passou a ser considerado "o Freud da literatura". As suas peças e romances causavam escândalo e reações violentas dos militaristas e anti-semitas. As suas obras foram utilizadas para mais de 50 filmes e, em 1999, Kubrik adaptou um seu romance no filme Eyes Wide Shut.
Gustav Klimt (1862-1918), pintor, figura de proa da Secessão de Viena. Parece que ia mais ao Café Museum.
Hugo von Hofmannsthal, dramaturgo e poeta.
Hermann Bahr, escritor, dramaturgo e crítico, o primeiro a aplicar o termo modernismo a uma corrente literária. Observador pioneiro e definidor, também, do expressionismo. Célebre pelas suas críticas de Gustav Klimt. Católico de origem, depois descrente, depois novamente católico.
Max Brod (1884-1968) escritor e jornalista, judeu alemão natural de Praga, amigo íntimo, executor testamentário e editor de Kafka. Viveu os últimos 30 anos em Tel Aviv.
Franz Kafka (1883-1924) escritor judeu de língua alemã nascido em Praga.
Franz Werfel, escritor, poeta e dramaturgo, nascido em Praga. Judeu de língua alemã convertido ao cristianismo. Fugiu para a América via França, Espanha e Portugal. Admirador de Lourdes, sobre a qual publicou na Califórnia The Song of Bernadette, 1942.
Karl Kraus (1874-1936) dramaturgo, poeta, ensaista, jornalista de origem judaica, natural da Boémia, Monarquia Austro-Húngara. Foi fundador e director da revista crítica e satírica Die Fackel (O Facho), de que saíram 922 números entre 1899 e 1936. Até 1911, Die Fackel publicou textos de Peter Altenberg, Richard Dehmel, Egon Friedell, Oskar Kokoschka, Else Lasker-Schüler, Adolf Loos, Heinrich Mann, Arnold Schönberg, August Strindberg, Georg Trakl, Frank Wedekind, Franz Werfel, Houston Stewart Chamberlain and Oscar Wilde. A partir de 1911, a revista foi escrita quase só por Kraus. Aos 22 anos abandonou definitivamente os estudos universitários em Viena (primeiro Direito, depois Filosofia e Literatura Alemã). Frequentou as tertúlias do Café Griensteidl e do Café Central. Foi membro da Jung Wien, mas separou-se do grupo em 1897, com a publicação da obra Die demolierte Litteratur (Literatura Demolida). Detractor de Hermann Bahr e Felix Salten. Cultor de uma sátira implacável, é considerado um dos seus principais expoentes em língua alemã no séc. XX. Foi autor, em 1922, da peça Os Últimos Dias da Humanidade, uma sátira da Grande Guerra, cuja primeira versão foi de 1915. Evoluíu, politicamente, do conservadorismo monárquico para o republicanismo democrático. Foi um crítico demolidor da corrupção no Império Habsburg e do nacionalismo pan-germânico. Atacou a psicanálise, também, embora respeitasse Freud. Karl Kraus converteu-se ao catolicismo (1899), mas abandonou-o em 1923. Troçou de Theodor Herzl e do sionismo (Uma coroa para Sião, 1898), advogando a assimilação dos judeus, pelo que foi apodado de "judeu anti-semita".
Egon Friedell (1878-1938) doutor em filosofia, historiador, jornalista, crítico de teatro, actor de cabaret, director artístico do cabaret Fledermaus (Morcego), aberto em Viena em 1907. Foi pioneiro do modernismo austríaco, tal como os seus amigos Kraus, Kokoschka e Altenberg. Entre os amigos de Friedell estavam quase todos os outros grandes autores da época: Franz Werfel, Hermann Broch, Robert Musil, Rainer Maria Rilke, Arthur Schnitzler, Hugo von Hofmannsthal. Escreveu uma História Cultural da Idade Moderna em três volumes e começou uma História Cultural da Antiguidade. Friedell era de origem judaica e converteu-se ao luteranismo. Suicidou-se em 1938, em Viena, atirando-se à rua quando a SA ou a Gestapo estava a chegar a sua casa para o ir prender. As suas últimas palavras, segundo uma lenda de humor negro, foram: "Cuidado aí em baixo!"
Karl Lüger (1844-1910), político católico, populista, anti-liberal e anti-semita austríaco, cujas ideias influenciaram o jovem Hitler na sua estadia em Viena. Liberalismo era, então, sinónimo de poderio económico dos judeus. Lüger uniu posteriormente o seu Partido Anti-semita aos Cristãos Unidos, formando o Partido dos Socialistas Cristãos (ou Social-Cristão) que, à data da sua morte, era o partido dominante na Áustria. Lüger foi conselheiro municipal desde 1875 e burgomestre de Viena de 1897 até 1910, período em que Viena se tornou numa das mais belas cidades europeias e num modelo de administração municipal (redes de abastecimento de gás e electricidade, "cintura verde" de floresta e campos envolvendo grandes partes da cidade, nova rede de abastecimento de água, etc). O anti-semitismo de Lüger, segundo certos, destinava-se mais a caçar votos e a aumentar a influência da Igreja católica do que, propriamente, a justificar uma perseguição aos judeus. Foi um político muito popular e respeitado.
Adolf Hitler, vendedor ambulante de desenhos e pinturas. Ao que consta, Hitler não gostava muito de cafés. Segundo, porém, as memórias do actor Rudolf Forster (1884-1968), “o pintor Adolf Hitler era um sombrio personagem que tentava vender as suas pinturas aos clientes do Café Central, ninguém lhe prestando grande atenção”. O futuro Führer viveu pobremente em Viena de 1907 a 1913, num albergue para homens solteiros de relativo luxo, pois tinha banho quente e luz eléctrica.
Yossif Vissarionovitch Stalin, que teria jogado xadrez com Trotsky no Café Central em 1912 ou 1913. Se non è vero, è ben trovato. Num intervalo das suas numerosas prisões na Rússia dos Czares, Stalin esteve, de facto, em Viena, desde fins de Dezembro de 1912 até fins de Janeiro de 1913. Estamos, assim, em condições de imaginar a seguinte cena: Trotsky e Stalin a jogar xadrez no Café Central, com Hitler ao lado da mesa, de pé, a tentar vender-lhes uma aguarela, para pagar o quarto alugado no albergue da cidade... Teoricamente, isso pode muito bem ter acontecido em Janeiro de 1913, quando os três se encontravam realmente em Viena!

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Outros “cafés literários” de Viena:


Café Frauenhuber. O mais velho café de Viena, frequentado já por Mozart e Beethoven, segundo a tradição.

Café Griensteidl. Estabelecido em 1847 na esquina da Michaelerplatz com a Herrengasse, foi o primeiro grande café literário de Viena. No fim do século, havia quem lhe chamasse "Café Grössenwahn" ou "Café Megalomania". Ali reunia o grupo literário Jung-Wien, "Jovem Viena", formado por Arthur Schnitzler, Hugo von Hofmannsthal, Hermann Bahr, Peter Altenberg, Karl Kraus, Felix Salten, etc., que alguns alcunhavam de "literatos de café". O Griensteidl cedeu a primazia ao Café Central quando, em 1897, teve de ser encerrado, para demolição do edifício e construção de um novo. Reabriu recentemente (1990), na esquina original, um café do mesmo nome.

Café Landtmann. Estabelecido em 1873, frequentado por artistas e políticos, era o café preferido de Freud, mas também lá iam Gustav Mahler, Peter Altenberg, Felix Salten e Emmerich Kálmán.

Café Museum. O preferido dos pintores, foi alcunhado de "Café Niilismo". Mantém ainda hoje a tradição de local frequentado por escritores e artistas.

Café Sperl. O preferido do compositor Franz Lehar e, dizem, de Hitler.

Café Herrenhof (do nome da rua Herrengasse). Abriu em 1918, roubando muita clientela ao vizinho Café Central. “Tudo o que era politicamente e eroticamente revolucionário foi para o novo café, as múmias ficaram no velho”, escreveu o poeta Anton Kuh. Também Hermann Broch, Elias Canetti e a romancista Vicki Baum eram clientes regulares. Decoração art nouveau. Fundado por um judeu de origem húngara, o Herrenhof entraria em decadência sob gestão "ariana", durante o regime nazi, não conseguindo no pós-guerra recuperar toda a sua clientela de artistas e escritores e acabando por fechar, ingloriamente, em 1961. Reabriu, ulteriormente, como um vulgar café sem chispa.

Café Diglas. Fundado em 1923.

Café Hawelka. Criado em 1939 no lugar que fora do Café Ludwig e, mais antigamente, do Je t'Aime Bar. Fechou durante a segunda guerra. Reabriu, intacto, em 1945. Quando o Café Herrenhof encerrou em 1961, o Hawelka herdou parte da sua clientela, sucedendo-lhe, assim, como o principal café literário de Viena.

Em 1900, Viena tinha cerca de 600 cafés. Muitos foram fechados após a I Guerra Mundial, bastantes transformados em bancos. Alguns voltaram a abrir nos mesmo locais, depois de falidos os bancos. O nazismo e a II Guerra voltaram a encerrar um grande número. Viena é hoje, novamente, uma cidade de muitos e belos cafés: 1500, segundo leio.

Viena defende e ressuscita os seus cafés, servindo de exemplo para as cidades que os desprezam e fecham.


© Texto de José Barreto.





Tuesday, June 06, 2006

"Teoria do Café Central" (1926),

por Alfred Polgar

O Café Central é, realmente, um café diferente de todos os outros. É mais uma visão do mundo, cuja verdadeira essência, todavia, reside em absolutamente não observar o mundo. O que é que ali se vê, então? Sobre isso, mais adiante. O que está experimentalmente assente é que não há ninguém no Café Central que não seja parte dele, isto é, em cujo espectro do ego não apareça a cor Central, que é uma mistura de cinza e verde ultra-enjoado. Se foi o local que se adaptou ao indivíduo ou o indivíduo ao local, é ponto controvertido. Admito que tenha havido uma acção recíproca. "Tu não estás no lugar, é antes o lugar que está em ti", diz o Peregrino Angélico. (1)

Se todas as histórias relacionadas com este café fossem moídas, colocadas numa cuba de destilação e gaseificadas, formar-se-ia um gás pesado, iridescente, cheirando vagamente a amónia: é o chamado ar do Café Central. Isso define o clima espiritual deste espaço, um clima bem particular em que a inaptidão para a vida, e só esta, floresce na plena manutenção da sua inaptidão. Aqui desenvolve a impotência os poderes que lhe são intrínsecos, aqui amadurecem os frutos da infecundidade e cobra juros toda a não-propriedade. Tudo isto só está ao alcance de um verdadeiro Centralista, alguém que, se o seu café está fechado, tem o sentimento de ter sido lançado às duras penas da vida, abandonado às mais imprevisíveis consequências, anomalias e crueldades do desconhecido.

O Café Central situa-se à latitude vienense do meridiano da solidão. Os seus habitantes são, na maioria, pessoas cuja repulsa pelos seres humanos seus semelhantes é tão viva quanto a necessidade de estar com pessoas que queiram estar sós, mas precisem de companhia para isso. O seu mundo interior requer uma camada de mundo exterior como material isolante; as suas frouxas vozes solistas não prescindem do suporte do coro. São naturezas inseguras, que ficam um tanto perdidas sem as certezas que tiram do sentimento de constituírem uma pequena parte de um todo, para cujo tom e cor contribuem.

Café Central, 2005 - Junto à porta, a estátua de Altenberg

O Centralista é uma pessoa a quem a família, a profissão e o partido político não dão este sentimento de pertença. O café apresenta-se, solicitamente, como uma totalidade sucedânea, convidando è imersão e à dissolução. É assim compreensível que, sobretudo, as mulheres, que nunca conseguem estar sós e precisam de, pelo menos, uma pessoa por perto, têm um fraco pelo Café Central. É o lugar para gente que sabe abandonar e ser abandonada para bem do seu destino, mas a quem falta ousadia para cumprir esse destino. É um verdadeiro asilo para quem tem que matar o tempo antes que o tempo o mate. É o doce lar daqueles que abominam o doce lar, o refúgio seguro de casais e amantes diante da ameaça de uma vida conjunta sem problemas, o posto de primeiros socorros das mentes confusas que, toda a vida em busca de si próprias e toda a vida em fuga de si próprias, escondem o seu ego fugitivo atrás de um jornal, conversas enfadonhas ou jogos de cartas, e empurram o ego perseguidor para o papel de maçador que tem que calar a boca.

O Café Central representa, pois, algo como uma organização de desorganizados.

Neste espaço venerado, cada indivíduo semi-indeterminado é creditado com uma personalidade plena. Enquanto se mantenha dentro dos limites do café, pode cobrir todas as suas despesas morais com este crédito. Àquele que mostre desdém pelo dinheiro dos outros está reservada a coroa anti-burguesa.

O Centralista vive parasitariamente da história que circula a seu respeito. Aí está o principal, o essencial. O resto, os factos da sua existência, tudo isso são notas de rodapé, adendas e embelezamentos que podem ser dispensados.

Café Central, Viena, 2005

Os fregueses do Café Central conhecem-se, amam-se e detestam-se mutuamente. Até aqueles que não estão vinculados a nenhuma associação consideram esta não associação como uma associação. A própria aversão mútua tem força associativa no Café Central; ela cumpre e põe em prática uma espécie de solidariedade maçónica. Toda a gente sabe da vida de toda a gente. O Café é um ninho de província no ventre da metrópole, a fervilhar de boatos, inveja e maledicência. Penso que os peixes no aquário devem viver como os habitués deste café, sempre em círculos apertados à volta uns dos outros, sempre atarefados sem propósito, usando a refracção inclinada da luz ambiente como um divertimento diferente, sempre expectantes, mas também cheios de ansiedade, não vá alguma vez algo novo, brincando ao “mar” com um ar grave, cair dentro da tina de vidro, no seu minúsculo fundo do mar artificial. Se amanhã, Deus não permita, o aquário fosse transformado num banco, eles sentir-se-iam completamente perdidos.

Naturalmente, o peixe-Central, habituado a partilhar com outros aquele exíguo espaço respirável durante tantas horas da sua vida, perdeu toda a timidez e cerimónia. O Centralista que se preza conduz a vida privada dos outros e não joga às escondidas com a sua própria. Isto, reforçado pela acostumada tendência do local para a auto-ironia e a serena confissão das fraquezas próprias, cria uma esfera de sociabilidade suspensa na qual toda a reserva púdica se esbate e extingue. Há fregueses do Central que andam por ali psiquicamente nus, sem receio que a sua nudez pueril e inocente seja interpretada como falta de vergonha. Aqui há uns anos, o proprietário do Café Central tentou acomodar o espaço a esta propensão paradisíaca dos seus clientes regulares colocando lá uma palmeira. Mas aquela donzela do Oriente não suportou o clima do local, apesar da dominante oriental do dito. Foi cortada em pedacinhos e os seus restos mortais encontraram utilização na cozinha − ou como combustível ou como grãos de café, os investigadores não chegaram a um consenso nesta matéria.

Só está habilitado a desfrutar do charme essencial deste esplêndido café aquele que nada mais quer dali do que estar lá. A ausência de propósito santifica a estadia. No fundo, talvez o habitué não goste do local nem da gente que ruidosamente o povoa, mas o seu sistema nervoso exige imperiosamente uma dose diária de Centralina. Dificilmente se pode explicar isto apenas pelo hábito. Nem pelo facto de a gente do Central se sentir sempre atraída, como o assassino pelo local do crime, por um lugar onde tanto tempo mataram, onde já dizimaram anos inteiros. Então qual é a explicação? A atmosfera! Só posso dizer isto: a atmosfera! Há escritores, por exemplo, que são incapazes de cumprir as suas tarefas literárias noutro lugar que não o Café Central. Só ali, naquelas mesas da indolência, está a mesa de trabalho posta para eles, só ali, envolvidos naquela atmosfera ociosa, é que a sua inércia se torna fecundidade. Certos tipos criativos só no Central conseguem não ter ideia nenhuma − noutro lugar, na verdade, ainda menos. Há poetas e outros industriais aos quais só no Café Central surgem ideias rendosas; pessoas com prisão de ventre a quem só ali se abre a porta do alívio; gente que há muito perdeu o apetite pelo erótico e que só ali sente fome; calados que só no Central reencontram a sua língua ou a de outra pessoa; e gananciosos cuja glândula monetária só ali secreta.

Este enigmático café tem o poder de serenar na inquieta gente que o visita aquilo a que chamo o seu desassossego cósmico. Neste lugar de relações descontraídas, a relação com Deus e com as estrelas também se descontrai. O indivíduo escapa às suas relações obrigatórias com o universo entrando num relacionamento casual, irresponsável e sensual com coisa nenhuma. As intimidações da eternidade não atravessam as paredes do Café Central, ao abrigo das quais se pode gozar a doce despreocupação do momento.

Sobre a vida amorosa do Café Central, sobre o equilíbrio das distinções sociais que nele vigoram, sobre as correntes políticas e literárias que banham as suas margens escalavradas, sobre os enterrados vivos no mausoléu-Central que há muito aguardam a sua exumação embora esperando que tal nunca venha a acontecer, sobre a comédia de máscaras plena de espírito e desvario que, naquelas salas, faz de todas as noites um Carnaval - sobre estas e outras coisas muito haveria ainda que dizer. Mas quem se interessa pelo Café Central já sabe tudo isso e quem não se interessa pelo Café Central não nos interessa a nós.

É apenas um café, mas que café! Nunca encontrarão outro lugar assim. Aplica-se a ele o que Knut Hamsun diz da cidade de Christiania na primeira frase do seu imortal Fome: “Quem lá passa fica marcado por ela”.

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NOTA:

(1) Uma referência ao escritor místico seiscentista alemão Johann Schefler (1624-77), mais conhecido sob o pseudónimo de Angelus Silesius (Anjo da Silésia). A sua obra maior foi Das Cherubinische Wandersmann (O Peregrino Angélico), basicamente uma colecção de apotegmas morais. [Nota de Harold Segel, vd. abaixo.]
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Título original: “Theorie des Café Central”, 1926. Vd. Alfred Polgar, Kleine Schriften, 4:254-59. Incluído na antologia de Harold Segel, The Vienna Coffeehouse Wits, 1890-1938 (Purdue, 1993).

© Tradução portuguesa de José Barreto.